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A pintura e a verdade

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A pintura e a verdade Empty A pintura e a verdade

Mensagem por Elijah Montgomery Seg Jul 15, 2019 6:45 pm


glorious chaos

O chão frio fazia minha pele enrugar, ele estava úmido e eu não conseguia afirmar com plena certeza se era água da chuva, infiltração dos canos velhos ou meu mijo. Talvez fosse os três. Minha mente vagueava constantemente enquanto as drogas afetavam o meu sistema, debilitando-o ainda mais. Se houvesse um medidor, em quantos por cento ele estaria? Vinte, dez por cento? Menos? Desde que eu havia sido aprisionado, o conceito de tempo e de saúde haviam se tornado coisas abstratas para mim, quase irreais. Uma sensação de vertigem se apossava de mim quase todos os dias, mas eu já estava acostumado agora. Era horrível, mas eu já havia me apegado à sensação de cair o tempo inteiro. Sonos sem sonhos, vida vazia como um jarro remendado sem flores: era isso o que eu era.

— Acorda, Eli! — Destiny me cutucou os ombros, fazendo-me abrir os olhos e pisca-los com força, me remexendo na cama enquanto eu me acordava. Fitei o teto, vendo as manchas negras se transmutando em rostos abissais. Eu precisava mudar aquilo.

— Destiny, você acha que essa casa pode ser assombrada? Você vê as manchas no teto se mexendo? Eu sonhei com um gato me assassinando. — Murmurei, fazendo a garota encarar o teto assim como eu e, calada, ela apenas maneou que não e saiu do quarto. Pisquei os olhos com força, coçando-os com as costas das mãos e bocejando.

— Acorda, Elijah! — Destiny me acordou, cutucando-me no ombro enquanto eu ia abrindo os olhos, despertando. Eu estava sonhando? Encarei-a, ainda desconfiado. Olhei para o teto, vendo que ele não era mais de madeira e sim de algodão. Hm, bem melhor.

— Pode me chamar de Eli se quiser, Destiny. Já está na hora do seu treinamento com o Vincent, não? — repreendi-a, olhando-a de cima a baixo e fazendo-a rolar os olhos. Ela odiava treinar com o mutante de poderes dracônicos, porém no fundo eu sabia que aquilo era por causa do crush que ela tinha no dragão. Não podia culpa-la.

Tomando um banho, preparei o café da manhã e então decidi ir encontrar Robert, meu detetive pessoal e que era pago semanalmente para localizar qualquer tipo de problema relacionado a mutantes. Ele hackeava sites e fóruns dos Pacificadores, sintonizava informações dos canais da polícia e até mesmo entrava nos sistemas do UCM – Unidade de Controle Mutante – e da SWAT. Bem, pode-se dizer que meu detetive era o meu grande ás na manga. Marquei um encontro numa praça, onde nos sentamos num banco fingindo sermos desconhecidos um para o outro.

— E então, o que tem para mim? — perguntei, retirando algumas migalhas de algodão doce e jogando-as para os pombos.

— Interceptei umas ligações. No início parecia ser só um bando de humanos planejando um assalto a uma casa, mas logo percebi algo — retirando o celular do bolso, Robert mostrou diversos quadros, todos eles belos e muito bem desenhados. Uns possuíam paisagens sóbrias, sombrias e melancólicas, enquanto outras eram bastante abstratas. — Esses quadros pertencem a Louis e, segundo minha pesquisa, ele é um mutante. Aparentemente seus quadros são viciantes como drogas e induzem visões. Inclusive ele usa uma cadeira de rodas, pois ele tinha um quadro consigo e o motorista ficou hipnotizado, acabou capotando e no acidente o pobre pintor perdeu o movimento das pernas.

Encarei bem as fotos dos quadros; eles pareciam normais. Louis foi mostrado por último, e ele não parecia nada demais. Era muito bonito, com uma barba espessa e castanha, com olhos verdes e um sorriso gentil. Havia uma generosidade latente em sua face, porém havia algo a mais ali, escondido naquelas iríses. Ele era intrigante demais para ser ignorado com tanta facilidade. Assenti para Robert, pondo-me de pé e aceitando um envelope com diversas informações, incluindo o endereço da casa do pintor e do líder da gangue, George. Precisava detê-los antes de colocarem em ação o plano medonho deles.

***

Não tinha um plano, pois eu era bastante impulsivo e gostava de improvisar, então eu precisava ir até eles e só lá que eu iria pensar em alguma coisa. Pelo conteúdo das ligações de George para os seus amigos, todos se reuniriam num galpão onde pegariam suas armas e trariam seus quadros após o assalto à casa. Bem, eu deveria mata-los e só então iria visitar Louis. Confesso que até eu estava intrigado pelos quadros ilusórios e macabros do pintor. Segundo as fitas com as ligações da quadrilha gravadas, eram sete homens e todos muito bem decididos a darem um fim no pobre Louis.

Não trouxe ninguém comigo, pois queria fazer tudo por conta própria e meus recrutas ainda treinavam para aprimorarem os seus poderes. Além do mais, eu iria salvar um mutante de assaltantes sapiens, o que poderia dar de errado? Dentro do galpão haviam caixas e mais caixas, além de algumas mesas e objetos de madeira – provavelmente era o galpão de algum carpinteiro ou madeireira. Escondido, esperei pelos homens chegarem e, no processo, fiquei jogando no celular, sentado e paciente. Como o meu tempo era limitado, precisava colocar meus bonecos em dia e evoluí-los. Em meio a uma partida séria e arriscada, fui interrompido pelo som do portão sendo aberto. Rolei os olhos, guardando o telefone no bolso e espiando os homens.

Contei-os, e eram realmente sete homens, todos bastante felizes e contentes, parecendo tranquilos. Sequer pareciam estar prestes a assaltar um cadeirante. Como certas podiam ser tão escrotas? Não sei como eu ainda conseguia ficar surpreso com as merdas que os humanos faziam. Irritado, criei uma esfera de energia caótica e, pondo-me de pé e saindo de meu esconderijo, lancei-a na direção dos homens. Três deles foram atirados para trás, tombando contra os outros e, aproveitando-me de tal distração, criei pontiagudas estacas de energia caótica e comecei a lança-las com pressa, criando-as com rapidez. Só cessei quando o último deles estava caído e, fitando-os ali, mortos, assenti para mim mesmo. Era hora de encontrar Louis.

***

A casa do homem era bastante bela, possuindo três andares e tendo flores de tulipas enfeitando as varandas e a frente da casa. Havia um frontão acima da entrada, cujo desenho em relevo retratava a deusa Éris, da mitologia grega, segurando a maça de ouro que fez todos os deuses brigarem. Eu gostava do mito da mãe dos males, pois ela era conhecida como uma matrona do caos e da discórdia. Envolvi a maçaneta do homem com meus poderes e entrei na casa bem iluminada já com a sensação de que eu era esperado. Por dentro, o ambiente era convidativo e morno, destoando do inverno lá fora. Os tons de cores eram muito opostos e haviam muitos diferentes objetos reunidos num mesmo espaço, formando uma decoração bizarra, porém rica em detalhes.

Estátuas de deuses egípcios, retratos de celebridades em luzes de néon, uma placa antiga de algum bar do Velho Oeste, sofá fofo e felpudo, tapete persa, televisão antiga em um armário de vidro com inúmeras rachaduras falsas, vários pufs presos ao teto com todas as cores possíveis... Era tanta coisa que, se eu parasse ali para notar e registrar cada detalhe, ficaria na sala de estar para sempre. Fazia sentido que o homem fosse considerado tão excêntrico. Havia um elevador ali, porém subi as escadas com calma, procurando por qualquer sinal de Louis. O que eu fazia ali, afinal de contas? Ele estava a salvo, não precisava da minha ajuda.

“Errado”, gritou uma voz masculina em minha mente, fazendo-me franzir o cenho e, segurando firmemente no corrimão da escada, reprimi um grito ao ver os degraus se moverem como numa escada rolante, descendo e subindo de forma confusa e desconexa. Aqueles degraus eram imóveis, então como podiam simplesmente se moverem daquele jeito? Depositei todo o peso do meu corpo no corrimão, retirando os pés dos degraus e subindo ao me esgueirar pelo corrimão de ferro negro. Os desenhos nos azulejos das paredes se moviam, enquanto o ratinho gritava e me apontava o dedo do meio.

— Você é um de nós, cara, você faz parte do Caos. Alegre-se e se regozije! — gritou o ratinho, enquanto eu acabava despencando do lado esquerdo da escada e, ao cair no chão, meu corpo tombou contra o fofo tapete da sala.

Não notei no início, mas eu estava subindo. Olhei para baixo e o solo coberto por azulejos estava literalmente se transmutando, subindo como uma enlevação bizarra por parte da natureza, à medida que eu ia subindo andar por andar e, fechando os olhos, só os abri quando parei de sentir o ar atingir violentamente o meu corpo por causa da rapidez com a qual subíamos. Entreabri meus olhos, notando estar em um quarto que deveria ser o sótão. O chão era de madeira, as paredes mudavam de cor constantemente e, à minha frente, Louis de costas desenhando em seu quadro. Seus fios loiros eram desgrenhados, sua barba estava enorme e ele se virou para mim em sua cadeira de rodas, rindo ao me ver deitado como uma criança indefesa em seu tapete branco e felpudo.

— Como você faz isso? — perguntei, engolindo em seco e me ajoelhando, esgueirando-me até o homem e então estendendo a mão para Louis, que as apertou com um largo sorriso. Ele parecia tão inteligente e sábio! — Quero que me ensine a espalhar o Caos. Eu quero ser o seu discípulo. Por favor, eu quero fazer mais!

Ele alisou minha face enquanto lágrimas desciam por minhas bochechas, enxugando-as enquanto dava um beijo sereno em minha testa. Suas mãos eram macias e grandes, másculas, e o cheiro de sua barba era de menta. Eu já o amava e mal havia lhe conhecido.

— Você é um fruto do Caos, assim como eu. Você e eu estamos conectados, meu amor. O que um dia foi meu agora é seu. — Ele chorava de felicidade e, ao beijar meus lábios, senti algo que eu nunca havia sentido antes. Ele fluía para dentro de mim, enquanto sua pele se tornava translúcida e uma energia esbranquiçada era transferida por aquele beijo.

Aquilo foi tão... transcendental, que eu apenas fechei os olhos e me senti ser preenchido por toda aquela energia cósmica e que ascendia o tempo, espaço e o próprio conceito de realidade. Quando eu relaxei, apenas abri os olhos e então me vi encarando... era um quadro. Caí de joelhos, sentindo o esperma descer por minha calça. Era a primeira vez que eu tinha um orgasmo em toda a minha vida. Suspirei, sendo observado por todos na galeria ao meu redor. Galeria de arte? Me vi diante de um quadro em tons negros, roxo, vinho e cuja verdadeira silhueta eu sequer poderia conceber, pois parecia ser tudo ao mesmo tempo. Em meio àquela complexidade, reparei que o desenho parecia ser o rosto bizarro no teto de meu quarto.

Cocei a nuca, pondo-me de pé e assentindo para todos que me olhavam um pouco confusos sobre como eu havia ido parar ali do nada. Era o Caos, meus amigos, era o Caos.



(c)
Elijah Montgomery
Elijah Montgomery

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