Deals with the Devil

Desde que Elijah havia saído do hospital psiquiátrico, tudo havia mudado. Sua vida não era mais tão enclausurada como antes, ele havia reconquistado a amizade de seu irmão e eles haviam tido um encontro tocante e dramático. Entretanto, para o lorde do caos, ainda havia muito o que fazer. O mundo havia mudado e, infelizmente, para o pior. O preconceito contra os mutantes estava maior do que nunca e o governo parecia caçar a raça dos Homo superior como se estes fossem meros animais selvagens. O clima de desesperança alcançava os corações de sua raça e, devotado à causa e a salvação de sua espécie, Montgomery decidiu fundar a sua Irmandade. Seu grupo deveria acolher todos os que precisavam de ajuda, proteger com unhas e dentes todos os mutantes e retaliar quaisquer ameaças ao futuro dessa geração.

Detetives estavam a postos, prontos para localizar e repassar tais informações para Elijah que, como um bom mentor, oferecia ajuda a todos os seus semelhantes, sem diferenciar ou julgar ninguém. Coisa que os X-Men amam fazer, em seus uniformes ridículos e se achando superiores aos próprios mutantes. Claro, eles tinham pessoas sob seu teto, dinheiro e influência, entretanto o lorde do caos estava pavimentando o seu caminho para chegar ao mesmo lugar que os seus oponentes. A vida é uma competição onde a linha de chegada é a morte. Vincent era um mutante livre e independente, sem associações e vivendo a sua vida de forma comum e até mesmo ordinária, sendo um mero mecânico. Não havia recruta melhor que aquele, pensou Elijah enquanto ia ao seu encontro.

O homem estava fechando sua oficina quando, estacionando bem na frente do lugar, o lorde desceu de seu carro e então, com um mero movimento de dedos, sua energia envolveu o interior do veículo e fumaça começou a subir.

— Meu carro estava com problemas durante todo o percurso, ele vive dando defeitos. Poderia dar uma olhada para mim? Preciso desesperadamente ir a uma reunião de trabalho, é urgente. Eu pago o dobro, se necessário. — Já abrindo a sua carteira, Elijah tentava convencer o outro e, dada a nuvem de fumaça do veículo, não seria muito difícil de descrer naquilo. Retirando várias notas de cem, estendeu-as para o mecânico, abrindo um sorriso nervoso para o mesmo – claramente ensaiado.

Xingei mentalmente a décima geração da pessoa que estacionou na minha frente pouco depois que fechei a oficina. Essas pessoas achavam que eu era um caixa 24h? Apesar de ser mutante, eu também precisava descansar e cumprir horas regulares de trabalho.

Respirei fundo e armei um sorriso para o homem que reclamava de uma avaria no carro. Pela quantidade de fumaça que saía do motor daquele Volvo, eu tinha certeza que se tratava de um superaquecimento. Coisa bem comum com os modelos mais desatualizados, como poderia ser o caso daquele.

Minha resposta pronta de "compre um extintor de incêndio e procure não danificar a bomba do motor" foi silenciada quando o sujeito sacou várias notas de cem de sua carteira. Esse realmente estava desesperado para um conserto.

— Relaxa, amigo — dispensei as notas, naquele momento, e fui até o portão para abrir e pegar uma caixa de ferramentas. — O motor deve estar só precisando tomar um pouco de ar.

Voltei rapidamente com a caixa pesada e dois banquinhos. Sentei em um e coloquei a regata que pendia em minhas mãos no outro, para apoiar as ferramentas.

Abri com cuidado o motor do carro e verifiquei a coisa mais estranha. Estava intacto. A fumaça que saía provavelmente era de alguma peça que se dilatou com o calor - que realmente derreteu o asfalto naquele dia. Estava tudo em ordem.

— Olha, vou só ver se o exaustor está funcionando, pode até ser uma avaria no seu sistema de ar-condicionado — falei enquanto metia a cabeça na máquina. Novamente, tudo limpinho. — Amigo, você tem certeza que seu carro deu problema?

Havia uma simpatia latente no mecânico, ele tinha uma beleza estonteante e juvenil, apesar do corpo musculoso pertencer definitivamente a um homem adulto, robusto e viril. Ele era lindo, notava Elijah, entretanto ele não podia render-se a seus impulsos naquele momento; ele estava em uma caça, em uma busca especial. Era preciso recrutar pessoas para o seu grupo, fazê-las verem a verdade que era escondida de todos pelo governo. O véu sobre a face da humanidade precisava ser rasgado e o líder da Irmandade tinha o poder para isso – de manter-se na frente ao Caos e ainda sim sorrir e estender o dedo do meio.

Em meio a sua inspeção, Elijah não pôde deixar de notar a desconfiança do outro ao notar que o carro havia sido sabotado. Claro, ele faria perguntas, ele parecia ser bastante curioso. Em meio as perguntas, Montgomery apenas põe a sua mão sobre o capô e, afastando o mecânico que estava debruçado sobre o veículo, fechou o mesmo. Não havia mais por que fingir.

— Podemos conversar em particular? Eu sou Elijah Montgomery, prometo não prejudica-lo em seu trabalho ou vida pessoal. É sobre sua mutação. — Tentando soar o mais cordial o possível, o mestre caótico tentava não soar intrometido demais, preferindo uma abordagem mais neutra e formal. Não havia como convencer ninguém caso a educação não estivesse presente. Ele não podia invadir lares ou já chegar com todas as cartas na mesa, então a discrição precisava ser essencial em seus planos. — Prometo não demorar muito. Sou um mutante, assim como você.

Pela primeira vez em muito tempo, meu sangue gelou. Poucas eram as pessoas com quem eu falava abertamente sobre minha mutação. A maioria também era mutante ou simpatizava minimamente com nossa causa.

Ainda assim, eu procurava me isolar de todo tipo de gente que viesse me perturbar com esse assunto, pois para mim as coisas eram claras: existíamos. Estávamos ali, assim como os humanos estavam. Ou eles aceitavam, ou mudavam de lugar, pois nem eu nem nenhum portador do gene X iria a lugar algum para agradar os estúpidos homo sapiens.

Olhei para os dois lados, me certificando que a rua estava vazia. Felizmente, naquela hora, poucos eram os que circulavam perto da oficina. Menos uma preocupação para mim. Vesti a regata e me levantei, pegando o braço do tal Elijah e o guiando para a casa ao lado da oficina.

— A sua sorte — sussurrei raivosamente. — É que o Controle Mutante não faz patrulhas por aqui. Está louco de anunciar essas coisas aos quatro ventos? Vamos, entra. Moro sozinho e as paredes não têm ouvidos como na oficina.

Peguei desajeitadamente as chaves de casa no bolso traseiro da calça e fiz um gesto para que o sujeito entrasse primeiro, verificando mais uma vez se alguém estava nas redondezas.

Joguei a chave no cinzeiro vazio - nunca fiz questão de fumar - e conduzi o "colega mutante" através do corredor até a cozinha, na frende das escadas para meu quarto.

— O que você sabe sobre mim? — Estreitei os olhos e peguei duas garrafas d'água na geladeira, entregando uma delas para Elijah e apertando levemente o plástico, exibindo as escamas dracônicas azuis brotando na pele. — Algum babaca do bairro vizinho resolveu me delatar?

Tentando soar controlado o máximo que podia, Elijah buscava convencer o outro a ouvi-lo. Arrastando-o para dentro de sua casa, o mecânico parecia um pouco preocupado, desesperado, até, advertindo-o sobre a Unidade de Controle Mutante e perguntando sobre que vizinho havia lhe entregado. Tentando não perder a paciência, Montgomery esperou que o outro pelo menos se acalmasse um pouco para prosseguir.

— Sou um mutante como você, e é justamente por isso que eu vim até aqui. Sou líder de um grupo conhecido como Irmandade, que reúne pessoas com um objetivo em comum: a liberdade. Você está satisfeito com a vida que tem? Sempre se escondendo, com medo e eternamente preso dentro de um armário como um brinquedo velho e esquecido? Precisamos lutar, Vincent. — Com as mãos nos bolsos, o mestre caótico sequer se importava com a demonstração de poderes por parte do outro; não sentia medo, apenas interesse em quem o seu conhecido mutante era – e não no quê.

A verdade era que Elijah era bom em recrutar pessoas, ele gostava de investigar, coletar informações, descobrir segredos e ir até seus amigos mutantes e convencê-los a se unir à sua causa. Mesmo ele tendo métodos nada convencionais de recrutamento, ele era genuíno quando falava sobre os seus desejos. Ele realmente queria um mundo melhor para os seus mutantes, havia de verdade uma flama no coração do líder mutante que o instigava a sempre procurar a superioridade da sua raça, um mundo melhor para todos, sem preconceito ou julgamentos. Os dias de cão para os mutantes um dia chegaria ao fim e Elijah sabia que seria parte desse processo.

Liberdade? Irmandade? Aquilo era algum tipo de piada com o lema francês da época da Revolução? Elijah, no entanto, não parecia estar brincando.

Desde que eu me entendia por gente, mutantes eram a escória da sociedade. Meus pais fizeram de tudo para ocultar o mundo de mim. Até que decidi agir sozinho.

Sabia muito bem como controlar minha mutação, sem dar qualquer tipo de motivo para virar chacota nos tempos de escola. Muito pelo contrário. Aqueles que um dia foram os valentões que zombavam de mim por ser medroso e magro definharam ao ficarem diante da minha sombra, quando cresci e fiquei mais esperto do que eles, em todos os sentidos.

Ainda assim, sabia que aquilo não levaria a lugar algum, já que o mundo adulto era bem mais cruel. Manter minha identidade em segredo, observando mutantes serem caçados como ratos de laboratório e sumirem pouco a pouco alimentava cada vez mais meu ódio. Meu ranço para com aqueles que se diziam donos do chão onde pisavam. Hipócritas. Cretinos.

— Com que tipo de armas lutaremos, então? — rebati. — Eles são mais espertos. Suas armas podem nos neutralizar em segundos, como vi muitos de meus vizinhos sumirem ao longo dos anos. Eu quero acreditar em você, cara. Muito. Mas preciso de fatos. Me mostre como podemos reverter esse jogo. Tentei fazer isso minha vida toda. Como vê, nunca deu certo.

Com que tipo de armas nós iríamos lutar? Vincent era como a maioria dos mutantes, reprimidos e acostumados a tanto tempo a permanecerem nas sombras que muitos decidiram continuar na escuridão. Eram pessoas de cabeças abaixadas, com o mundo pesando em suas costas e sem nenhuma perspectiva além da sobrevivência. Éramos tão inferiores assim? Merecíamos viver daquela forma, com medo e sendo colocados em prisões só por terem nascido daquela forma? Precisávamos sair para as ruas, protestar, se possível tomar os nossos direitos à força. Que armas iríamos usar?

— Nós somos a arma, Vincent. Com os seus poderes e os meus poderíamos destruir essa rua inteira, caso fosse da nossa vontade. Se eu conseguir reunir pelo menos cem mutantes essa cidade inteira sucumbiria à nossa mera vontade. Sabe qual a pior artimanha do maligno, rapaz? A segregação. — Comentei, explicando ao rapaz de poderes quentes enquanto me aproximava. A lógica do mecânico era equivocada, pífia, e eu sabia que a maioria achava o mesmo que Vincent.

Peguei uma garrafa d’água ofertada, bebendo-a enquanto esperava que o moreno absorvesse cada palavra dita, refletindo sobre tudo.

— Os humanos têm armas para compensar seus paus minúsculos e para reafirmar seus egos. Sem um revólver em mãos o que um policial é? Apenas um homem com um pedaço de ferro dourado que serve como identificação, se achando superior aos mutantes e com um ego superior à sua altura física. — E o que eu falava era a mais pura verdade. Eles eram egocêntricos, priorizavam enviar um homem para a lua do que acabar com a fome de seus vizinhos, preferiam enviar mísseis nucleares e abatedores do que tentar conversar e dialogar. Onde estava a diplomacia nessas horas? Os humanos se resumiam a seres cheios de caprichos e egoísmo abissais.

— Eles são ruins, Vincent, enriquecem às nossas custas, nos caçando como monstros sendo que tudo o que queremos é viver! Acha certo? Você realmente acredita que poderemos viver dessa forma por muito tempo? Precisamos revidar, lutar e resistir. Todos os direitos que nós conseguimos e todas as outras minorias conquistaram foi através do quê? De pedidos de desculpas, com “por favor”? Ou você acha que tudo o que foi conquistado para as minorias foi através de muita luta? — proferi, jogando a garrafinha para o mecânico e então deslizando os dedos indicador e médio pela mesa de sua cozinha, retornando para a sala. — Você precisa ser inteligente, garoto. Ficar consertando carros não vai impedir que um dia te peguem e te coloquem num laboratório subterrâneo pelo resto da sua vida, sendo torturado e servindo de cobaia.

A proposta de Elijah era tentadora. Juntar mutantes que estivessem tão indignados com os demais com a situação em que nos encontrávamos e combinar esforços para virar o jogo. Passar uma mensagem clara para os humanos: o tempo deles acabou.

Por muito tempo me senti reprimido e acuado ao ver amigos mutantes serem menosprezados por serem diferentes dos humanos. Por muito tempo fiquei em silêncio, remoendo lentamente o ódio e o desprezo pela espécie que sempre se achou superior a todas as outras.

Surpresa, mutantes são uma ramificação dos homo sapiens. Partilham os mesmos sentimentos e as mesmas vontades. Nosso intelecto, porém, era mil vezes mais desenvolvido. Nossa capacidade de adaptação não se comparava a nenhum outro ser vivo. O futuro nos pertencia. Cabia aos demais aceitar ou morrer tentando nos impedir

Ainda assim, eu estava relutante. Ele poderia ter riquezas, influências e tudo o que quisesse ao seu alcance. Isso não significava nada sem a confiança dos supostos membros da sua organização. Palavras vazias eram fáceis de jogar para uma multidão. Cativar, ganhar sua atenção, eram coisas muito mais valiosas.

— Se um dia "me pegarem" — sorri largamente. — Vão virar poças de plasma e restos de carne. Muito bem, você ganhou minha atenção. Talvez eu me junte à sua causa. Um pouco de caos entre os humanos não deve ser tão ruim assim, mas quero que me mostre o que você realmente sabe fazer. Falar é muito fácil. Já convenci negociadores de peças antigas com muito menos do que isso.

Havia confiança em Vincent. Ele realmente se achava e isso poderia ser preocupante, principalmente em batalha. Quanto maior é o voo, maior é a queda, como já aprendi com o mito de Ícaro.

— Olha, eu aprecio a sua confiança, mas a cada dia que se passa a situação dos mutantes só piora. Nem todos possuem o nível de poder ou de controle para que saiam ilesos da Unidade de Controle Mutante. E que bom que você pode se defender, mas existem milhares de mutantes por aí que não podem. — Comentei com as mãos nos bolsos, sentando-me no braço do sofá do rapaz, sorrindo. Seu pedido para que eu demonstrasse os meus poderes não me pegou de surpresa, pois não sou muito exibicionista com eles.

Valeria a pena? Talvez, Vincent me parecia ser bom o suficiente, seus poderes me pareciam ser bem interessantes e, se o que fiquei sabendo era verdade, ele deveria ser bem poderoso. Ergui minha mão direita e, movendo-a, fiz a energia caótica surgir envolta nela, cujo brilho sombrio acentuava o tom vinho da minha magia. Levitei diversos objetos da cozinha, enquanto criava espadas apontadas para o mecânico. Erguendo-me do solo, aproximei-me do outro, que acabava de ser levantado também do chão.

— Eu manipulo o Caos. Agora, sua vez. Eu te mostrei o meu e agora você me mostra o seu. — Alfinetei de forma maliciosa, sorrindo de canto.

No fim das contas, Elijah estava certo. Eu poderia ter coragem o suficiente para enfrentar todos os exércitos do mundo, mas muitos outros mutantes não contavam com isso. Era necessário lutar por eles. Fazer com que acreditassem que nossa causa não estava perdida. Estávamos ali para resistir e existir. Ninguém tiraria esse direito.

Quando o sujeito começou a demonstrar seus poderes, um calafrio desceu por toda a minha espinha. Ele sabia fazer magia. Magia. Algo que eu desprezava desde criança, achando completamente bobo cada filme do tipo "Aprendiz de Feiticeiro" até "Truque de Mestre".

Aquilo ali era a comprovação clara e palpável do quão errado eu estava. Levitar objetos, criar armas, levitar pessoas. Envolver tudo em uma aura roxa e caótica. Aquilo era simplesmente incrível.

Quando pousamos, fiquei um tanto envergonhado de mostrar minha mutação, já que não se comparava ao que Elijah sabia fazer. Nem eu mesmo entendia a extensão de tudo aquilo que uma criatura escamosa e cuspidora de fogo conseguia fazer. Não ainda.

— Não vale — ri com a provocação de Elijah, tirando minha camisa e respirando fundo. — Você faz coisas mais divertidas. Só sei virar a aberração da Terra dos Dinossauros.

Revirei os olhos e deixei que as escamas azuis cobrissem todo o meu corpo, criando uma fenda alaranjada no meio do peito, que pulsava quente e fumegante. Soprei um pouco de vapor que preencheu toda a sala, indo até a cozinha e escapando pelo coifa. Se eu não tivesse uma dessas, provavelmente precisaria me mudar de casa e explicar para os vizinhos como ela havia ardido.

— Viu? Não é nada demais — voltei ao normal e o encarei, ponderando se vestia ou não a blusa largada no sofá. — Mudando um pouco de assunto, como pretende estabelecer essa base de apoio para os mutantes? Não vai ser tipo esses otários dos X-Men, né?